A ESCOLA PÚBLICA NO BRASIL: PROBLEMATIZANDO A QUESTÃO

Introdução

Tem sido comum referir-se que a escola pública é uma instituição em crise, até mesmo fadada ao desaparecimento. Nenhuma outra instituição recebeu tantos adjetivos quanto a escola pública. Nos anos 70 foi denominada de tecnicista, nos anos 80, foi considerada elitista, excludente, burocrática, reprodutora. Nos anos 90, por conta das teses neoliberais, foi considerada incompetente, e seus profissionais improdutivos. Estudos historiográficos recentes sobre educação pública vem insistindo sobre a necessidade de se estabelecer uma distinção entre Escola Particular, Escola Estatal, Escola Pública e Escolar Popular.
A primeira sendo mantida por grupos particulares, geralmente religiosos; a Segunda, mantida pelo Estado e que atende a maioria da população, no período republicano serviu para civilizar as massas; A terceira seria aquelas as quais nascem de iniciativas de grupos étnicos a fim de atender os interesses e necessidades desse grupo, com organização própria e que se mantém com recursos não necessariamente estatais (SANFELICE, 2001, 95).
No entendimento do autor, não se pode dizer que tivemos ou que temos uma Escola Pública. E que os estudos historiográficos no que se refere à educação pública precisa ter bem claro essa diferenciação entre o que é Público e Estatal, caso contrário, isto interferirá na luta pela construção de uma real educação pública laica, gratuita e para todos.
Como uma Escola Estatal poderá atender os interesses do público, do povo, sendo que o Estado surgiu para manter as relações de dominação dos meios de produção do capital e na atualidade, embora com certa autonomia, o Estado ainda está atrelado à manutenção do modo de produção capitalista ?


Pontuando elementos históricos
Os ideais da escola pública e laica como a conhecemos atualmente, surgiram com a Revolução Francesa (1789), tendo como princípios norteadores a liberdade, igualdade e fraternidade, proclamados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). O discurso liberal1 tornou-se hegemônico, considerada como uma das cruzadas da burguesia contra a feudalidade com a tomada do poder político. Urgia então construir um novo sistema de ensino, voltado para formar um novo homem. Constituiu-se em um arrojado manifesto da burguesia na luta contra o absolutismo, ao criar condições políticas favoráveis para o desenvolvimento das relações capitalistas, passando a nortear a nova ordem mundial.
Proclamando a igualdade jurídica de todos os homens, a burguesia, no século XVIII, na França, uma classe jovem, mas já revolucionária, declarou a inviolabilidade do direito de propriedade individual. A liberdade econômica, a liberdade individual, a liberdade da palavra e a igualdade pressupunha a necessidade de transmitir novos conhecimentos. A sociedade capitalista, tal como se organizava no final do século XVIII, início do século XIX, propunha uma nova concepção de educação em correspondência com as transformações econômicas, a partir da afirmação da sociedade liberal, fundamentada em um sistema de competição social e econômica.
A doutrina liberal atribui á educação escolar papel preponderante na construção da sociedade. Neste sentido, é na direção de uma ordem liberal que a escola deverá ser organizada. Um novo homem deverá ser formado sob as virtudes do caráter, da honra, da coragem, do altruísmo e da disposição pelo trabalho. O século XIX é marcado pelo triunfo da doutrina liberal sob a profecia de que o regime das liberdades, política, econômica e individual, como condição necessária para a prosperidade de todos. O liberalismo também ficou denominado como a doutrina do laisses - faire, isto é, faça o que bem estender, como grito de guerra dos comerciantes, industriais e banqueiros contra o poder econômico e político absolutistas.
Todavia, a doutrina liberal também experimentou, no final do século XIX, as maiores reações às suas intenções, ao seu conteúdo filosófico e as suas conseqüências sociais. Como resultado deste processo, temos o surgimento da classe operária, que passou a reivindicar igualdade de acesso aos bens, a ordenação do socialismo utópico e do socialismo científico. O movimento revolucionário de 1848 foi o ápice desta reação, culminado com a vitória da burguesia.
Neste prisma, no Brasil, a proclamação da República (1889) consistiu em um movimento cujos ideais nasceram inspirados numa concepção positivista de educação, marcada pela crença sistemática na educação como mola propulsora para a modernização da sociedade brasileira. A necessidade de definir um projeto educacional para o país consistiu em um dos principais eixos do movimento republicano e dos discursos políticos da época, sendo apontado como a chave para se atingir o pleno desenvolvimento. Temos então o debate em torno da necessidade de encaminhar a organização do Sistema Nacional de Ensino, para fortalecer a unidade nacional. Este momento caracterizou-se pelo predomínio das idéias liberais que indicavam a liberdade individual e econômica como eixos norteadores da modernização.
Foi neste contexto que foram decretadas em 1890, as reformas educacionais pelo governo provisório do Mal. Deodoro da Fonseca, através do decreto n. 981, promovendo a Reforma do ensino primário e secundário, convergindo alguns dos ideais para a constituição da escola pública brasileira, gratuita e laica. Implementa-se um programa positivista, sendo adotado como doutrina pedagógica de ensino e colocando em prática os ideais tão caros a doutrina liberal como a separação entre Igreja e Estado e a laicização da educação, a partir do culto a ciência, nos estabelecimentos de ensino. Com as reformas, criou-se uma expectativa de ruptura com aquilo que os intelectuais positivistas denominariam de atraso e a desorganização na qual se encontrava a escola imperial. Sobre isso FARIAS FILHO assim se refere;
Na criação desta representação observamos não apenas a produção de uma memória onde a instrução anterior á reforma é tida como algo negativo e quase que inexistente, mas também o vínculo da reforma com quilo que de mais moderno se apresentava para os reformadores: a organização capitalista do trabalho e o mundo e as relações urbanas. (1998:35)
A idéia de uma cultura escolar no contexto republicano pressupunha a organização de um espaço separado da casa e da rua. Neste sentido buscava-se cada vez mais a parcelarização e especialização do trabalho pedagógico. Colocava-se no horizonte republicano a perspectiva de uma escola de massas no contexto urbano capitalista emergente. Ao ressaltarem a necessidade de um novo tipo de escola, os positivistas defendiam a busca de novos meios de aprendizagem e de comportamentos de acordo com os padrões sociais da sociedade capitalista.
Destituído o poder monárquico e hereditário, o decreto n 1 de 15 de novembro de 1889 põe fim à ordem vitalícia, designando um governo temporal apoiado no ideário republicano, estabelecendo as normas fundamentais, de cunho liberal que iriam reger a nação. Na Constituição republicana de 1891, em seu art. 6 afirmava os objetivos republicanos: (...) "assegurar o livre exercício dos direitos dos cidadãos e a livre ação das autoridades constituídas".2 Delegou-se às antigas províncias, agora novos Estados federados, a tarefa de auxiliar na "manutenção da ordem e da segurança pública, defesa e garantia da liberdade".3 Segundo esta concepção a desigualdade é fruto natural da evolução dos indivíduos e não resultado da estrutura econômica. Esta idéia marca a concepção de sociedade e educação estabelecidos no texto constitucional.
O laicísmo torna-se a palavra-chave, conforme diz o art. 72 sobre a "Declaração de Direitos": Todos são iguais perante a lei". "Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto [...]". "Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos". A educação assume enfim, a responsabilidade de disseminar e desenvolver o espírito cívico, fazendo do Brasil uma nação de cidadãos, ou seja, de homens livres, longe das amarras de qualquer poder centralizador. No centenário da Revolução Francesa, o Brasil, à sua moda republicana, exaltava aqueles princípios, colocando-os como farol de sua ordenação jurídica. Com a força militar, o Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório, buscava defender a unidade nacional em torno dos interesses liberais da economia.
O aparecimento das primeiras máquinas na industrialização ainda que rudimentar no Brasil, na República recém-instalada , indicava que a passagem pela escola devia ser um ritual no qual os cuidados com o corpo, a disciplina e a higiene deveriam ser os componentes fundamentais no processo de criação de uma nova cultura escolar até então inexistente.
Neste prisma, a educação escolar torna-se sinônimo de disciplina do hábito, ou seja, o desafio estava em implementar uma pedagogia higiênica4 voltada à formação do futuro operário. Sobre isso assim se referiu as reformas de Benjamin Constant sobre o regulamento da Instrucção Primária e Secundária da Distrito Federal, através do decreto 981 de 08/11/1890. Art. 1. È completamente livre aos participantes, no Districto Federal, o ensino primário e secundário, sob as condições de moralidade, hygiene e estatistica definidas nesta lei. Art. 2.Para dirigir estabelecimento parcticular de educação será exigida esta mesma prova e mais o certificado das boas condições hygienenicas do edifício, passado pelo delegado de hygiene do districto. Art. 8. O governo providenciará para que se construam edifícios apropriados ao ensino, de accordo com os mais severos preceitos da hygiene escolar e com habitações anexas destinadas ao professor. Art. 59. Aos inspetores escolares incumbe particularmente a vista frequente e a rigorosa inspeção dos estabelecimentos de ensino primário e secundário abrangendo a parte material, as condições de hyhiene das escolas a parte technica do ensino. Art. 24. O porteiro e mais empregados subalternos advertirão com toda a urbanidade os que praticarem qualquer acto em contrario à boa ordem e o asseio do edifício.(grifos nossos)
Projetava-se a construção de edifícios escolares que, diferentemente dos do império, visava à higiene escolar, justificando a necessidade de um corpo escolar saudável que respira bem, que enxerga bem, que se locomove bem, que dá higienicamente fim aos dejetos de limpeza e finalmente que seja controlado atreves da interiorização noções de ordem. Sobre a descrição do seu edifício escolar, Nunes aponta as prescrições contidas nas normas:
Sua localização ideal seria um terreno com a dimensão mínima de 65 m por 130 m. Deveria ser erguido de forma subordinada às correntes de ar, à direção média pela qual os temporais se propagassem com maior freqüência na localidade e às condições de boa iluminação. Dividir-se-ia em três corpos: um central, para crianças de 7 a 10 anos, e dois laterais, o da esquerda, para meninas de 10 anos a 15 anos, e o da direita, para meninos na mesma faixa etária. Na entrada de cada um desses corpos ficaria um vestiário onde seriam guardados chapéus, guarda-chuvas e outros objetos com espaço suficiente, entre os cabides, para limpeza, desinfecção, ventilação e facilidade de fiscalização dos zeladores do prédio. Cada compartimento desse vestiário deveria ser classificado por aulas (leia-se salas de aula) e alunos, organização essa necessária, como Vidal mesmo afirma, para incurtir no espírito das crianças hábitos de ordem e higiene. (1996,p. 166. Grifos da autora)
No espaço - escola tem-se o lugar para aprender, produzir efeitos de realidade nos discursos que ela carrega: ministrar o ensino. Isso torna o espaço - escola super- valorizado pela sociedade que a elegeu como uma instituição privilegiada de ensino. Podemos então perceber que foi no final do século XIX que se originou o prestígio do professor na sociedade. A profissão de professor nessa época era valorizada, tinha um status. Completando, a sociedade via com bons olhos o professor. Considerando a higienização na escola como aspecto da disciplina estaremos indicando que um projeto higiênico– educacional seria de grande importância para a população urbana brasileira.
A sociedade do século XIX , ao eleger o espaço urbano como local para humanizar-se, a escola também teve que procurar humanizar-se no mesmo espaço. A partir desta idéia, as escolas passaram a serem construídas no sentido da busca da luminosidade, higiene, liberdade, como espaço cultural que uniformize a disciplina. A República instalada elegeu a saúde e a fraternidade como fórmula de seu projeto. Neste sentido, os professores deveriam priorizar, em seus trabalhos escolares, a formação de hábitos e disciplinas, pois neste método permite-se economizar trabalho e tempo, portanto mais resultados, tão caros à produção capitalista. A arquitetura escolar também passou a ser diferenciada, desde o século XIX, de outras instituições, como hospitais, prisões, Igrejas, entre outras. O êxito do trabalho docente, portanto, deve estar marcado pela regulamentação do trabalho escolar destacando a questão da ordem e da disciplina. Afinal, para a lógica capitalista, a economia do tempo é imprescindível para o bom andamento dos resultados. A idéia de que tempo é dinheiro, tão necessária aos objetivos da burguesia, exigia que os operários aprendessem uma nova forma de viver, agora sobre um tempo medido, marcado, cronometrado rigorosamente. Estava em jogo a necessidade de fazer um bom uso do tempo.
A partir do século XV, disseminou-se a formação de homens cultos e hábeis na arte de negociar, ou seja, além de culto, o homem deveria ter capacidade para o processo de troca. Assim, a educação do homem renascentista tinha como objetivo despertar sua razão investigatória, de forma a prepará-lo para o mundo dos negócios. Anibal Ponce, em Educação e luta de classes, assim se refere à formação desse homem: “O renascimento se propôs formar homens de negócios, que também fossem cidadãos cultos e diplomatas hábeis” (PONCE, 1981: 110).
A educação pública e o ideário liberal
Durante o período renascentista, os estudos eram privilégio da nobreza e do clero. Com a formação da burguesia mercantil, esta passou a exigir uma "nova educação", que seria concretizada com a introdução do ensino da geografia, aritmética e história, entre outros conhecimentos que deveriam estar mais conforme as suas necessidades. Pretendia-se, com isso, formar naquele momento o jovem "gentleman", capaz de enfrentar os desafios colocados pela nova época e impulsionado pelo desenvolvimento do comércio, contribuir para as descobertas científicas.
Aquilo que era útil e prático para os homens passou a constituir os principais valores da nova classe social emergente, em oposição à vida pacata e calma dos monges, bem como ao ensino dogmático feudal. Assim, o Renascimento do comércio e, conseqüentemente, a produção cada vez mais intensa de produtos não só repercutiu nos negócios como também nos métodos educativos de ensinar as futuras gerações. A valorização dos negócios, e, portanto, da vida terrena, o uso da razão e a valorização do indivíduo tornaram-se os elementos inovadores do ensino da nova sociedade que estava surgindo.
As novas condições materiais criadas pelos homens a partir de então provocaram mudanças nas relações sociais e produziram também uma nova concepção de vida. No início do século XVIII, o liberalismo surgiu como filosofia inovadora, cujos princípios passaram a nortear a estruturação e o desenvolvimento da sociedade. A essência dessa nova relação social passou, cada vez mais, a identificar-se com a produção de mercadorias, cujo sustentáculo era a propriedade privada. Se, antes, a riqueza era justificada pelos princípios religiosos, a partir de então passou a ser concebida como posse natural. Esse novo anseio social implica na existência de uma sociedade dinâmica, composta por homens empenhados em construir um novo mundo. Com a Revolução Gloriosa na Inglaterra, a Revolução Francesa, a Independência dos Estados Unidos e as modificações introduzidas pela Revolução Industrial, surgiu a necessidade de se transmitir um conhecimentos sistematizada a este novo homem, já identificado como o homem burguês.
A sociedade capitalista, tal como se organizava no final do século XVIII, baseava-se numa nova forma dos homens estabelecerem suas relações, ou seja fundamentava-se na produção de mercadorias voltada para a troca. A nova dinâmica social, inaugurada no século XVIII, levou ao poder uma nova classe social: a burguesia. Neste sentido, a burguesia estava cada vez mais consciente de seus interesses econômicos sociais e políticos. Seus representantes tinham percebido que a organização de uma nova forma social passava pela total reformulação do Estado e pela eliminação dos privilégios do clero e da nobreza.
Assim, a Revolução Francesa foi uma luta, na qual a burguesia teve o papel principal, cuja vitória significou o aniquilamento da velha sociedade e concomitantemente a afirmação da sociedade liberal. A todo instante, a burguesia iria se amparar nos princípios da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, votada e aprovada no dia 26 de agosto de 1789, na França, foi o instrumento político onde se declarou os princípios fundamentais da nova sociedade e serviu como modelo de inspiração a todos os movimentos liberais que se desencadearam daí em diante. Pretendia-se, com isso, definir e garantir os direitos elementares do futuro cidadão numa sociedade democrática. Esses princípios, denominados de inalienáveis, foram expressos em dezessete artigos da nova constituição francesa, que deveria servir de modelo para todas as nações: “A liberdade individual, a liberdade da palavra, a liberdade de consciência, a segurança e a resistência à opressão foram proclamados direitos naturais imprescritíveis do homem e do cidadão” (MANFRED, 1965: 84).
Proclamando a igualdade jurídica de todos os homens, a burguesia, no século XVIII na França, uma classe jovem e revolucionária, declarou a inviolabilidade do direito de propriedade individual, opondo-se à forma hierárquica da propriedade.A célebre frase "Liberdade, igualdade e fraternidade, uma das marcas da Revolução Francesa", foi um verdadeiro e arrojado manifesto da burguesia na luta contra o regime absolutista, que ainda tentava se manter no poder. Os dezessete artigos da Declaração dos ideais da classe burguesa significaram a sistematização dos desejos da burguesia, através da luta pela liberdade, propriedade, igualdade, individualismo, enfim, pela democracia. Portanto, foi o pensamento liberal expresso por um conjunto de idéias, elaborado pelos pensadores ingleses e franceses, principalmente a partir do século XVII, que passou a nortear a nova ordem social.
Para melhor compreensão, destacamos os princípios fundamentais. O individualismo é o princípio que considera o indivíduo como sujeito que deve ser respeitado por suas aptidões e talentos próprios. A função do governo é a de permitir ao máximo que cada indivíduo desenvolva seus talentos, em competição com os demais. O princípio da liberdade está associado ao individualismo. Antes de tudo está a liberdade individual, dela decorre a liberdade econômica, intelectual, religiosa e política.
O princípio da propriedade é outro elemento fundamental da doutrina liberal. Esta é entendida como um direito natural do indivíduo. A doutrina liberal repudia os privilégios decorrentes do nascimento e sustenta que o trabalho e o talento são os instrumentos legítimos de ascensão social e de aquisição de riquezas, assim qualquer indivíduo pobre, mas que trabalha e tenha talento, pode adquirir propriedade e riquezas. A igualdade é outro valor importante para a doutrina liberal, porém não significa igualdade de condições materiais. Assim como os homens não são tidos como iguais em talentos e capacidade, também não podem ser iguais em riquezas. A verdadeira posição liberal exige a igualdade perante a lei, igualdade de direitos entre os homens, igualdade civil. Todos têm, por lei, direitos iguais à vida, à liberdade, à propriedade, à proteção das leis.
Estes princípios do liberalismo estão interligados, a não realização de um deles implica na impossibilidade de todos os outros. Outro importante princípio da doutrina liberal é a democracia, que consiste no direito de todos participarem do governo através de representantes de sua própria escolha. Os interesses pessoas de cada indivíduo seriam, assim, os de toda a sociedade. A doutrina liberal atribui à educação escolar papel preponderante na construção da sociedade moderna. Assim, nesse momento histórico, o novo homem era aquele que tinha acesso aos bens materiais e aos direitos políticos assegurados pelas leis constitucionais. através da convivência em uma sociedade democrática, onde todos tinham o direito de participar das decisões, via voto livre, permitia-se a plena realização do indivíduo. É assim que se dá a construção do Estado de direito democrático. É a esta organização social e política que a escola cidadão irá servir na manutenção dos interesses e necessidades da ordem burguesa, sobretudo no século XX.
Com a vitória da burguesia, entretanto, formou-se um ser social contraditório que, ao mesmo tempo em que deveria ser exemplo de conduta moral (cidadão-político), deveria também se preocupar em garantir sua sobrevivência, a de sua família e de sua empresa através de uma relação de exploração e de busca por um lucro constante. Este homem deveria ser formado sob as virtudes do caráter, da honra, da coragem, do sentimento pelo amor ao público e da disposição para o trabalho. Aquele que não tivesse essas características era considerado ocioso.
No entanto, esse novo homem vivia em uma relação conflituosa e contraditória com sua prática social, ou seja, o ser material, egoísta explorador, deveria mostrar também sua "sensibilidade social". Analisando esta contradição, Zélia Leonel afirma: O ser material é o burguês egoísta, tem existência real, é objeto de certeza imediata e sensível. O ser moral, é o cidadão, não tem existência real, é uma abstração um ideal, um artifício (LEONEL, p. 45). Nesse sentido, a concepção liberal dá ao ser material egoísta uma "roupagem" moral, enaltecendo virtudes abstratas como altruísta, simpático, justo, fraterno, autônomo e às vezes até bonito.
Assim, este ser contraditório substituiu o homem feudal com a missão de colocar ordem na desorganização social. Seus deveres para com Deus foram substituídos por deveres voltados ao Estado democrático. A Revolução Francesa destruiu as relações de produção feudal, neste sentido ela foi nitidamente uma Revolução Burguesa, pois criou condições políticas favoráveis para o rápido desenvolvimento do modo de produção capitalista. A liberdade econômica foi um dos princípios que deu base a todos os ideais de transformação da classe burguesa contra a velha relação feudal.
Então, o liberalismo foi a resposta mais avançada e elaborada que a burguesia deu à aristocracia e à nobreza feudal. A Declaração de independência americana, que antecedeu dezessete anos à Revolução Francesa, foi o início do processo emancipatório, que se desencadeou em toda a Europa. Porém, o ocorrido em 1789 não influenciou somente a Europa, os ideais do liberalismo contaminaram os quatro cantos do mundo e provocaram as reformas constitucionais de quase todos os países.[1] Se, até a primeira metade do século XIX, o cidadão idealizado por Locke e outros pensadores é um ser revolucionário e, portanto, transformador da sua realidade, a partir de 1850, com o processo de crise do capital e, com a Comuna de Paris e o aumento da miséria, o Estado burguês forja o indivíduo defensor de sua pátria. Sintetizando esse importante momento histórico, Zélia diz: “Tratava-se na verdade de defender os interesses burgueses frente à grande crise do capital, na esteira da qual seguiam as lutas concorrenciais por novos mercados” (Ibid, p. 185).
É com este espírito que a burguesia aprofunda o discurso em defesa da escola pública. Com isso, a burguesia organiza uma ação mais afetiva do Estado, através de criação de escolas públicas para todos os níveis e programas de assistência material, alimentar e médico, criam-se ainda programas de bolsa de estudo, subsídios e empréstimos para que os alunos "carentes" tenham acesso ao estudo.
Dentro desta ótica, o homem revolucionário do século XVIII terá pouca consistência moral. O ideário liberal o forjará romanticamente, mas agora, para colocá-lo a serviço da civilização burguesa, com o intuito de conquistar novos mercados. Esse enfoque romântico, dado pela educação liberal, é uma maneira de suavizar a fúria e a voracidade do homem burguês na busca do lucro.

Considerações finais
A partir das reflexões introdutórias consideramos que compreender o panorama dos debates e das reformas no contexto republicano e seu projeto educacional, torna-se imprescindível para compreender a emergência da escola pública brasileira. As críticas que se fazem a escola pública atual não podem, em hipótese alguma, se transformar na condenação dos professores como se pretendeu no passado recente, como culpados pela crise da escola pública. Os ideais da escola burguesa nasceram no século XV, na época do Renascimento na Europa. Neste momento, a escola adquire um papel de fundamental importância no processo de construção do mundo burguês. Nesta época ela era uma instituição revolucionária na medida em que se contrapunha à estrutura educacional do feudalismo. Diferentes autores darão ênfase à nova forma de educar o homem, totalmente diferentes do modelo anterior.
Vários fatores podem ser apontados e que se somam a este quadro de tensão vivida pela escola pública brasileira. Uma ação deliberada das elites que sucateiam os serviços sociais. Uma política instável de formação inicial de professores incompatível com a complexidade e as necessidades das escolas públicas. Uma cultura escolar que privilegiou a criança branca, de classe média, do meio urbano e católica, tratando, portanto, como “estranhos” a grande maioria dos alunos que freqüentam as nossas escolas e que não correspondem a essa representação. Achatamento salarial dos profissionais da educação. A violência nas escolas e agressão aos professores são apenas sintomas do agravamento desta crise.
Nossa época vem se transformando aceleradamente numa mercadoria e a escola passa a se constituir num dos promissores negócios de nosso tempo. Face a este cenário, não deixa de ser um momento oportuno de retomarmos as bandeiras de defesa de uma educação pública, gratuita, laica, obrigatória, de qualidade e universal .
Em lugar de uma escola onde “professores fingem que ensinam” para “alunos que fingem que aprendem”, centrada na forma e não no conteúdo, é preciso propiciar a todos os homens o acesso aos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade, bem como uma educação crítica, voltada ao atendimento de toda a sociedade e centrada nos conteúdos.
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Notas
1 São elementos do liberalismo: A moral, como sendo a afirmação dos valores básicos do indivíduos como a liberdade. O político, que inclui os direitos políticos, o direito do voto . O econômico, como sendo o direito de acesso a propriedade.
2 BONAVIDES & ANDRADE. História Constitucional do Brasil. p. 638.
3 Ibid.
4 O higienismo consistiu num movimento, formado por médicos que predominou durante o final do século XIX e início do século XX . Sofreu forte influência positivista, tendo como objetivo implementar políticas de saúde e de novos hábitos á população carente, com forte repercussão na área da educação. Ver MERISSE, Antonio. Origens das Instituições de atendimento á criança: o caso das creches. In: MERISSE, A. Lugares da Infância. UNESP.